Para Exército, Guarda Nacional de Dino é desperdício de dinheiro 

A proposta do Ministro da Justiça Flávio Dino de criar uma Guarda Nacional para supostamente proteger o Distrito Federal é considerada pelos militares como um desperdício de dinheiro público. Se forem acionadas devidamente, as Forças Armadas têm condições plenas de manter a ordem na capital do país junto com a polícia local. Parte da iniciativa do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, chamada de “pacote da democracia”, é vista como peça de uma narrativa falsa que tenta associar a instituição Exército aos atos de vandalismo do dia 8 de janeiro na Praça dos Três Poderes.

O “pacote da democracia” é uma proposta de medida provisória que foi apresentada por Dino a Lula na quinta-feira, 26. O texto detalhado não havia se tornado público até a última sexta-feira.

Além de criar uma controversa Guarda Nacional, o pacote de normas quer obrigar redes sociais a retirar do ar informações que podem representar ameaças para o Estado. Mas não está claro se, na prática, isso vai abranger também críticas legítimas ao governo.

O ministro disse em entrevista que não se trata de um instrumento de censura, mas de uma forma de remover informações que correspondam a crimes tipificados no Código Penal e na Lei de Terrorismo do Brasil.

A medida trata ainda da tipificação de novos crimes — como atentado contra os presidentes da República, do Supremo Tribunal Federal e da Câmara dos Deputados — e também cria instrumentos para sequestrar bens de suspeitos de participar de crimes contra a democracia.

As propostas foram empacotadas pelo ministro em objetivos nobres. Mas elas despertam temores em uma parcela da população de que o pacote seja o embrião de uma polícia política ou de tropa militar oficial a serviço do Partido dos Trabalhadores.

Conversei com membros da cúpula das Forças Armadas durante a semana. Seus nomes e postos não serão revelados para evitar represálias políticas. Faço ainda a ressalva de que as opiniões que estou relatando não são a posição institucional das forças, mas sim tendências de pensamento individual de alguns de seus integrantes de alto escalão.

A criação de uma Guarda Nacional é vista como redundante para uma função que já é exercida pela polícia do Distrito Federal e pelo Exército.

Pode até ter havido falhas de autoridades civis e militares durante os atos de vandalismo de 8 de janeiro, isso é objeto de investigação. Mas possíveis falhas na operação que vigiava as manifestações naquele dia não significam que o Exército Brasileiro e a Polícia Militar do DF não tenham capacidade técnica ou vontade suficiente para proteger as instituições da República.

Falhas têm que ser punidas e corrigidas, mas não justificam a criação de uma nova instituição, redundante, para realizar um trabalho que já é feito há décadas.

Além de desperdiçar milhões de reais — talvez bilhões a longo prazo — a criação de uma Guarda Nacional está sendo entendida como um ataque político à missão das Forças Armadas de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que está prevista na Constituição de 1988 e já foi usada mais de 150 vezes.

O argumento equivocado de apoiadores da criação da guarda é que o acionamento das Forças Armadas em uma operação de GLO em Brasília poderia enfraquecer politicamente o presidente Lula. Isso porque um oficial general de uma das forças assumiria o comando da operação de segurança e consequentemente das polícias, supostamente ofuscando a autoridade de Lula.

Primeiro, isso não é necessariamente verdade. Inúmeras operações de Garantia da Lei e da Ordem foram decretadas no Rio de Janeiro durante diversos governos, inclusive do Partido dos Trabalhadores. Na maioria delas, as Forças Armadas não substituíram os governadores do Rio e nem de longe ameaçaram a autoridade do cargo. Elas apenas forneceram apoio armado e logística para estratégias estabelecidas pelas autoridades civis.

O único caso em que um governador, Luiz Fernando Pezão, perdeu autoridade sobre a área de segurança pública foi na Intervenção Federal de 2018. Na ocasião foram estabelecidas ao mesmo tempo uma intervenção federal e uma operação de GLO. Como o interventor escolhido era o comandante do Exército na região, o general Walter Souza Braga Netto, ele também ficou responsável pela GLO. Mas tudo isso foi negociado politicamente, não foi uma imposição. GLOs podem ocorrer e geralmente ocorrem independentemente de intervenções federais. Os militares não tomam o lugar dos políticos eleitos.

O outro erro no raciocínio que diz que Lula poderia ter a autoridade ameaçada por uma GLO é que essa lógica supõe que as Forças Armadas atuariam com viés político e não como instituições de Estado.

Mesmo em um cenário nacional composto pela lamentável normalização da candidatura de Lula, por casos em que o STF foi vítima, investigador e juiz em inquéritos que atentaram contra liberdades individuais e pela omissão do Congresso, as Forças Armadas optaram por não interferir na política do país.

Isso ocorreu mesmo diante de pedidos feitos por milhares de pessoas que se reuniram em frente aos quartéis no país inteiro, através de uma interpretação equivocada da Constituição (segundo a qual o artigo 142 permitiria uma intervenção militar legítima na política, o que não é verdade).

Por que então, mesmo tendo resistido a tantos apelos desesperados, as Forças Armadas adotariam uma posição política agora, justamente em um episódio deplorável de violência?

Quando milhares de manifestantes invadiram a Praça dos Três Poderes no dia 8 de janeiro não havia nenhum tipo de conspiração militar para derrubar o governo, como defendem alas mais radicais da esquerda. Não havia tropas mobilizadas e os oficiais comandantes mais importantes sequer estavam em suas unidades militares no domingo. Qualquer suposto golpe planejado institucionalmente com colaboração das forças exigiria ao menos essas condições.

As investigações sobre os organizadores e financiadores do vandalismo em Brasília ainda estão em andamento. Assim, não é possível descartar que militares e policiais tenham tido participações individuais. Mas uma atuação institucional das Forças Armadas é altamente improvável.

Mas então por que Lula trocou o comandante do Exército?

A substituição do general Júlio César de Arruda, que ficou menos de um mês no comando do Exército, foi classificada pelo Ministro da Defesa José Múcio Monteiro como uma “fratura de confiança”.

Arruda foi exonerado do cargo no dia 21 de janeiro e a maioria da sua tropa foi informada por um boletim jornalístico da Rede Globo que interrompeu a exibição do filme dos Gremlins na tarde de sábado. Tudo prosaico demais para as tradições das Forças Armadas e difícil de engolir pelos militares.

O anúncio ocorreu menos de 24 horas após uma reunião em que Lula convocou os comandantes das forças para perguntar quais eram suas necessidades — o que foi interpretado como uma tentativa de aproximação.

Algo ainda não explicado aconteceu com Lula entre a noite de sexta, 20, e a manhã de sábado, 21. Os militares com quem falei supõem que algum político ou assessor convenceu erroneamente o presidente de que o Exército estaria politizado.

A ideia de politização do Exército teve sua gênese no fato de que muitos militares da ativa e da reserva foram convidados a participar do governo de Bolsonaro (de forma similar a Lula ter se cercado de sindicalistas em seus governos anteriores).

Apesar disso, as Forças Armadas continuaram com autonomia e seguindo sua própria agenda — que nem sempre coincidia com as prioridades do governo Bolsonaro.

A versão oficiosa para a troca do comandante Arruda se baseia em dois acontecimentos. Um deles foi o Exército ter impedido a Polícia Militar de prender manifestantes que estavam acampados na Praça dos Cristais, em frente ao Quartel General de Brasília, na noite entre os dias 8 e 9 de janeiro.

O temor dos militares era de que poderia haver conflito se a ação fosse noturna, e muitas pessoas poderiam ser feridas. Havia mulheres e crianças no acampamento. As prisões ocorreram na manhã seguinte sem violência.

O outro acontecimento está relacionado à suposta demora do Exército para reverter a nomeação do ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro para o comando do 1º Batalhão de Operações Especiais de Goiânia. O tenente-coronel Mauro Cid é investigado pelo STF por ter realizado operações em dinheiro para o ex-presidente, em um alegado mas não comprovado esquema de caixa 2.

Adversários políticos de Bolsonaro o acusam ter ter intercedido junto ao Exército pela nomeação de Cid para o comando do batalhão. Já os militares dizem que o processo de escolha de Cid foi legítimo, pois obedeceu o processo seletivo da instituição e foi feito no momento em que todos os colegas de turma do tenente-coronel estão assumindo postos de comando.

Arruda acabou sendo exonerado antes do desfecho do caso. O próprio Cid decidiu pedir para não assumir o comando do Batalhão de Operações Especiais por temer ser indiciado durante o exercício do comando, o que seria muito negativo para a unidade militar.

Oficiais do Exército dizem não saber se ele tem culpa ou não na investigação de caixa 2. Mas afirmam acreditar que, no atual cenário, certas autoridades federais contrárias a Bolsonaro não vão medir esforços para tentar prender o ex-presidente.

A troca de comandante do Exército foi assim interpretada como uma falta de sensibilidade do governo, que não reconheceu os esforços das Forças Armadas para conter os ânimos de militares, especialmente da reserva, que defendiam a intervenção.

Arruda foi substituído pelo general Tomás Paiva, ex-Comandante Militar do Sudeste. Na terça-feira, 24, ele presidiu pela primeira vez uma reunião do Alto Comando do Exército, quando os 16 generais decidiram colocar uma pedra sobre o assunto da troca de comando.

Tomás e Arruda se encontraram no dia seguinte em São Paulo, onde foram fotografados em um abraço fraternal — que serviu de símbolo da coesão do Exército. Apesar de tudo, Arruda deixa o Exército tranquilo e com a sensação de dever cumprido após décadas de serviço, segundo alguns de seus interlocutores.

O que (não) se sabe sobre a ideia da Guarda Nacional?

Há pouquíssimas informações sobre isso. Sabe-se que ela teria de 5 mil a 7 mil homens, substituiria a atual Força Nacional e atuaria na defesa da Praça dos Três Poderes.

Possivelmente também teria jurisdição sobre todo o DF — o que desagradou a governadora Celina Leão. Segundo ela, o DF tem uma Polícia Militar capaz, mas pode ter havido falhas de comando no dia do vandalismo.

Segundo relatório do interventor na segurança pública do DF, Ricardo Cappelli, muitos batalhões de polícia responsáveis pela segurança da capital não foram acionados e não havia plano operacional para acompanhar os manifestantes no dia dos atos de vandalismo.

Hoje a Força Nacional é formada por um efetivo rotativo de pouco mais de mil homens, a maioria policiais militares cedidos pelos estados. Não se sabe se a Guarda Nacional seria formada por policiais militares, ou por militares da ativa ou da reserva das Forças Armadas.

Hoje a Força Nacional possui helicópteros, caminhonetes e carros de modelos civis, assim como as polícias militares e civis. Mas não se sabe que tipo de Guarda o governo quer montar.

Em outros países, como os Estados Unidos, por exemplo, a Guarda Nacional se assemelha mais com unidades de infantaria leve do Exército e da Força Aérea do que com unidades policiais. Eles usam helicópteros de combate, blindados e aviões de transporte de tropas, entre outros equipamentos pesados.

No modelo americano, a Guarda Nacional é usada para ajudar em desastres naturais, conter distúrbios urbanos e até atuar em conflitos fora do país.

O governo brasileiro pode ainda querer seguir o modelo venezuelano, onde a Guarda Nacional Bolivariana atua em paralelo às Forças Armadas e às polícias (que agem em níveis nacional, regional e municipal).

A Guarda Nacional Bolivariana é um braço das Forças Armadas usada ostensivamente no combate à criminalidade e sofre de graves problemas de corrupção. A maioria dos seus comandantes foram apontados por razões políticas pelo regime chavista.

Mas copiar no Brasil o modelo venezuelano de Guarda Nacional não significa necessariamente criar uma força militar ou policial de caráter político.

Na Venezuela, a repressão a políticos de oposição (e em menor escala a jornalistas e blogueiros) é feita pelo Sebin (Serviço Bolivariano de Inteligência), criado com ajuda do governo cubano.

O papel de braço armado da política chavista também é realizado pelos “coletivos”, que são grupos de milícias chavistas formadas por membros da população em armas. Elas foram criadas pelo governo de Hugo Chávez após tentativa de golpe contra o regime em 2002 e depois se desvirtuaram e passaram a praticar crimes e disputar territórios na Venezuela.

Formar a pretendida Guarda Nacional brasileira será um desafio para o governo Lula. Isso porque não se forma oficiais, sejam policiais ou militares, da noite para o dia.

E como será o treinamento dos combatentes? Eles servirão durante tempo integral ou poderão exercer outras atividades profissionais paralelas, como ocorre nos EUA? De onde virão os recursos financeiros, se mal há dinheiro para atender as Forças Armadas e as polícias que já existem? Como será a política de compliance para evitar a corrupção? Dino está pensando em criar uma nova polícia, um novo Exército para atuar em redundância com os que já existem ou quer criar uma milícia civil?

Pergunto ao leitor: não seria melhor que o governo do presidente Lula deixasse de lado as teorias da conspiração de seus membros radicais e direcionasse esforços para uma pacificação real e para a manutenção de uma relação de Estado com as Forças Armadas e as polícias?

Os militares vêm sofrendo ataques de todos os lados, desde a desconfiança do governo à decepção de cidadãos que acreditaram que as Forças Armadas poderiam salvar o país da crise política.

Creio que a opinião dos militares agora é não olhar para o passado e trabalhar pela união dos brasileiros, com o objetivo de caminhar em direção a um país mais justo e honesto.

Gazeta do Povo

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