Candidatos barrados custaram R$ 26 milhões nas eleições de 2020

A adoção do financiamento público das campanhas, a ausência de uma regra mais rigorosa para a distribuição interna dos partidos e o prazo curto de análise dos registros pela Justiça Eleitoral possibilitam o desperdício de milhões de reais a cada nova eleição.

Parte dos recursos é usada pelas legendas para bancar candidaturas inviáveis nas urnas e que, durante a campanha ou somente após o resultado ser declarado, tiveram a participação vetada na Justiça.

Dados oficiais do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tabelados pelo Estadão mostram que candidatos considerados inaptos receberam R$ 27,5 milhões dos fundos eleitoral e partidário nas eleições de 2020. O número considera apenas repasses diretos nas contas dos candidatos. Do montante, só R$ 1,4 milhão foi devolvido aos partidos ou redirecionado a outros concorrentes, o que permite estimar que essas campanhas inócuas consumiram efetivamente algo em torno de R$ 26 milhões somente naquele ano.

O prejuízo aos cofres públicos deve ser ainda maior nas eleições de 2024, na medida em que o fundo eleitoral atinge a cifra de R$ 4,9 bilhões, mais do que o dobro dos R$ 2 bilhões liberados há quatro anos. Com mais dinheiro em caixa, aumentam as chances de um valor maior de recursos parar na conta de candidatos indeferidos, cassados e que abandonam a campanha no meio do caminho.

A maior parte dos recursos contabilizados se refere a políticos que foram impedidos de concorrer no momento da análise dos registros de candidatura pela Justiça Eleitoral. O problema é que os processos costumam levar tempo e os candidatos podem adentrar o período de campanha até uma sentença definitiva do TSE eliminá-los da disputa. Nesse meio tempo, nada impede que eles recebam e gastem dinheiro público para pedir votos.

Especialistas ouvidos pelo Estadão atribuem esse problema ao fato de os registros de candidatura ocorrerem imediatamente antes do início da campanha eleitoral, o que torna impossível que os problemas sejam identificados a tempo de evitar que os políticos recebam e apliquem recursos do fundo eleitoral e partidário e apareçam na propaganda eleitoral em rádio e televisão, que também gera custos ao poder público.

O caso mais extremo ocorreu em Coari, município de 70 mil habitantes do Amazonas. Adail Filho, concorrendo pelo Progressistas, gastou R$ 690 mil na sua tentativa de reeleição na cidade. Foram R$ 352 mil apenas com material gráfico de campanha, como adesivos e “santinhos”, além de R$ 175 mil para colocar militantes na rua e distribuir os panfletos, segundo a prestação de contas.

Adail recebeu pouco mais de 22 mil votos (59%). Nos primeiros dias de dezembro daquele ano, porém, o Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas (TRE-AM) decidiu, por unanimidade, indeferir o seu registro, anulando o resultado. O motivo era que seu pai, Adail Pinheiro, eleito em 2012, teve o mandato cassado dois anos depois pela Lei da Ficha Limpa. Como Adail Filho governou a prefeitura entre 2016 e 2020, a Justiça entendeu que o mesmo núcleo familiar assumiria um terceiro mandato consecutivo em Coari, o que é vedado pela legislação.

O hoje deputado federal argumentou, por meio de seu advogado, que a candidatura foi “baseada numa interpretação absolutamente razoável e de boa-fé da legislação eleitoral”, porque o mandato do pai havia sido interrompido. Ele também ressaltou que obteve decisão favorável em primeira instância e estava resguardado por uma consulta ao juízo. “À época do dispêndio das despesas de campanha, o deputado não teria como adivinhar que a Justiça Eleitoral adotaria entendimento diferente daqueles formalmente existentes no período da eleição.”

Por conta da quantidade de votos anulados, a eleição em Coari precisou ser refeita no ano seguinte. O pleito foi vencido por Keitton Pinheiro, primo de Adail que era seu vice na chapa de 2020. Neste ano, o clã planeja o retorno de Adail Pinheiro, pai do deputado, atualmente filiado ao Republicanos, ao comando da prefeitura da cidade do Amazonas. Ele tem em seu histórico condenações por desvio de recursos públicos e envolvimento uma rede de exploração sexual de crianças e adolescentes.

Em Santos Dumont, cidade mineira de 46 mil habitantes, o pecuarista Bebeto Faria concorreu a prefeito pelo antigo DEM, hoje União Brasil, e fez campanha até o final, mesmo com uma decisão judicial de 1ª instância indeferindo o seu registro semanas antes do primeiro turno. Ex-prefeito, ele acabou apenas em terceiro lugar, com 3.832 votos. Ainda assim, teve o gasto mais elevado entre todos os concorrentes, alavancado por R$ 510 mil do fundo eleitoral.

Bebeto Faria foi barrado com base na Lei da Ficha Limpa, acionada em razão de um ato de improbidade administrativa que teria sido cometido em 2014. O ex-prefeito, que deve concorrer novamente este ano, agora pelo PSD, declarou ao Estadão que a decisão ocorreu faltando praticamente duas semanas para as eleições e que “já tinha realizado gastos de campanha, tudo dentro da legalidade”, e que sua prestação de contas foi aprovada. Disse ainda que confiava na reversão da sentença, mas o caso foi arquivado por perda de objeto uma vez que não foi eleito.

Desistências alimentam o desperdício

O levantamento do Estadão mostra que, dos R$ 26 milhões de fundo eleitoral gastos por candidatos inaptos em 2020, mais da metade entraram na conta de políticos com registros indeferidos ou que não cumpriram os requisitos mínimos para se apresentar nas urnas. Esse escopo inclui os políticos barrados pela Lei da Ficha Limpa, entretanto, só é possível detalhar a data das decisões e o motivo específico analisando cada um dos milhares de casos envolvidos.

Já o gasto de políticos que desistiram de concorrer antes da votação chegou a R$ 4 milhões. Especialistas explicam que esse número possivelmente está inflado por candidaturas que tiveram um primeiro revés na Justiça e preferiram abrir mão da disputa para que o partido indicasse um substituto no prazo de até 20 dias antes do primeiro turno.

Foi o que ocorreu com Dona Cida, candidata a prefeita pelo antigo PROS em Planaltina, cidade de 105 mil habitantes no interior de Goiás. Ela foi a recordista de gastos do fundo eleitoral na modalidade. Na época, ela havia assumido o governo na condição de vice-prefeita. Dona Cida é mãe do fundador e então presidente da sigla, Eurípedes Júnior, que passou a presidir o diretório nacional do Solidariedade após a incorporação do PROS. Atualmente, ele está licenciado do partido e se entregou à Polícia Federal após ser alvo em uma operação da última quarta-feira, 12, por suspeita de desvio de R$ 36 milhões do fundo partidário.

Antes da renúncia, Dona Cida aplicou R$ 402 mil de fundo eleitoral, incluindo R$ 50 mil no aluguel de um trio elétrico, R$ 67 mil para produzir e distribuir propaganda na rua e R$ 190 mil com assessor de imprensa, gerenciamento de redes sociais e serviços de advocacia e contabilidade. O abandono se deu após decisão desfavorável no TRE-GO, que indeferiu a candidatura por conta de condenação por irregularidades na prestação de contas da eleição de 2018.

O Estadão procurou Eurípedes Júnior e Dona Cida por meio de diversos contatos listados na página oficial do Solidariedade e não obteve retorno. A respeito da operação da Polícia Federal, a defesa de Eurípedes diz que ele nega as irregularidades e afirma que ele vai provar “sua total inocência em face dos fatos que estão sendo apurados nos autos do inquérito policial em que foi determinada sua prisão preventiva”.

Fraudes à cota de gênero

As despesas de candidatos cassados posteriormente pela Justiça Eleitoral são mais difíceis de serem evitadas, porque esses processos tendem a tramitar por anos até a conclusão e dependem do momento em que a infração é cometida. Nas eleições de 2020, a União financiou R$ 4,8 milhões na campanha desses candidatos, que depois foram barrados por diferentes motivos, como abuso de poder político e econômico, uso indevido dos meios de comunicação ou compra de votos, por exemplo.

Existe ainda o cenário em que não apenas um candidato é impedido pela Justiça Eleitoral depois de consumir recursos públicos, mas sim uma chapa inteira de vereadores. A principal razão que explica essas cassações é a fraude à cota de gênero. Por lei, as siglas devem registrar ao menos 30% de mulheres nas urnas e transferir uma quantia proporcional do fundo eleitoral. A regra costuma ser driblada por meio de candidatas “laranjas”, que estão presentes apenas para fazer número sem empenho real em ganhar votos.

Em Goiânia (GO), a fraude à cota de gênero levou ao impedimento de nada menos do que 180 candidatos, com a cassação das chapas inteiras de Cidadania, PMB, PRTB e PTC, renomeado depois para Agir. Destes, 56 fizeram uso do fundo eleitoral: R$ 39 mil por 26 postulantes a vereador do Cidadania e R$ 250 mil de 30 do Agir. A decisão ainda resultou na troca de cinco vereadores em exercício na cidade.

Especialistas defendem antecipação do registro de candidatura

A solução mais eficiente apontada por especialistas consultados pelo Estadão para reduzir o desperdício com inaptos é antecipar o prazo de registro de candidaturas. A medida daria tempo para os casos serem analisados antes do início das campanhas, reduzindo o gasto com políticos “ficha suja” e registros indeferidos por outros motivos.

Fernando Neisser, professor de Direito Eleitoral da FGV, aponta que os prazos da Justiça Eleitoral para as partes se manifestarem dentro dos processos já são considerados “ultracurtos” em relação aos demais tribunais. “O registro de candidatura hoje fica em cima da eleição. Não tem como, é fisicamente impossível de analisar. Se a gente somar todos os prazos, ninguém atrasar nada e a Justiça Eleitoral for a mais célere possível, não se tem como, numa campanha municipal que tem que passar por um juiz, TRE e TSE, decidir antes dos 20 dias do prazo de substituição”, avalia.

“O registro de candidatura hoje fica em cima da eleição. Não tem como, é fisicamente impossível de analisar”.

Ele entende que o começo da campanha deveria ser mantido em 16 de agosto, mas o prazo das convenções partidárias e do registro de candidatura deveria ser antecipado para o começo de julho. “Dando esses 40 dias a mais para a Justiça Eleitoral analisar os registros, especialmente considerando que ela não estará ocupada julgando um monte de representação de propaganda, essa questão já estaria definida com duas semanas de campanha.”

O debate chegou a ser levado ao Congresso em agosto do ano passado, em um projeto de minirreforma eleitoral, mas a sugestão não foi acatada pelos deputados na versão final do texto. Há o receio entre os partidos de que a antecipação dos prazos afete as costuras de alianças e torne o cenário das disputas mais imprevisível pela distância até o pleito.

Além disso, conforme menciona Marilda Silveira, professora de Direito Administrativo e Eleitoral do IDP, a dificuldade em analisar os pedidos antes das eleições costuma obrigar a Justiça Eleitoral a refazer os pleitos, gerando mais custos. “Só teria jeito de não desperdiçar esse dinheiro se o registro fosse antecipado. Porque aí a gente teria a certeza de quem pode ser candidato e quem não pode”, destaca.

O promotor de Justiça aposentado Edson de Resende Castro, ex-chefe da Coordenadoria Estadual de Apoio aos Promotores Eleitorais (Cael) do Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG), levanta a possibilidade de entrar com pedidos de liminares em casos mais flagrantes, de modo a evitar o gasto e o uso de propaganda eleitoral gratuita, que também gera despesas à União. Ainda assim, ele considera que a linha de atuação seria uma excepcionalidade e que a melhor forma de evitar as despesas seria mesmo conceder mais tempo de análise para a Justiça.

Outro modo de evitar desperdício seria pedir o ressarcimento dos valores. Essa hipótese foi levantada ainda em 2018 pela então procuradora-geral da República, Raquel Dodge. Na época, o PT pretendia lançar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) mesmo podendo ser enquadrado na Lei da Ficha Limpa. A ideia era que os candidatos considerados inelegíveis tivessem de pagar de volta os recursos públicos utilizados.

A proposta nunca prosperou, pelas dificuldades práticas na sua implantação. “Tentar ser candidato é um direito político de primeira geração, uma das coisas mais fundamentais da cidadania”, lembra Neisser, para quem uma regra geral do tipo poderia desincentivar a entrada de pessoas bem intencionadas na política. Marilda Silveira, da mesma forma, vê problemas. “O que a gente pensa a partir da nossa Constituição é que, se for para perder alguma coisa, que seja dinheiro, e não o direito político de alguém, porque é direito fundamental”, diz.

A Advocacia-Geral da União (AGU) tem optado por pedir ressarcimento a alguns candidatos específicos que foram eleitos mediante compra de voto e outras situações mais graves e, dessa forma, obrigaram o governo a bancar eleições suplementares. Somente nos últimos quatro anos, foram realizadas 119 eleições do tipo em todo o Brasil. Estima-se que a maior parte se deve a ilícitos de campanha.

Em fevereiro deste ano, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) condenou dois ex-prefeitos a cobrirem as despesas em pleitos realizados em Bom Jesus, em 2018, e Parobé, em 2020, ambos no interior do Rio Grande do Sul. Ainda não há, porém, validação da tese no Superior Tribunal de Justiça (STJ).

A AGU declarou ao Estadão que o ajuizamento das ações para recuperação de valores exige trânsito em julgado de condenação na Justiça Eleitoral e que acompanhará os eventuais processos relacionados às eleições de 2024. O TSE afirmou que fiscaliza a prestação de contas e que, fora da matéria financeira, as denúncias são averiguadas pelo Ministério Público.

O MPF disse que os seus integrantes podem solicitar ao juiz concessão de liminar para que não sejam repassados recursos públicos a determinados candidatos, assim como pedir a devolução dos valores, mas que cabe ao procurador natural analisar caso a caso para a entrada da ação.

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